"Insatisfeito crônico, irremediável e irredutível insatisfeito: Por isso então sempre buscando, sempre dissecando, sempre amando, sempre escrevendo, sempre sonhando, sempre brincando, sempre subvertendo a ordem das coisas, sempre,
sempre aprendendo." Eu, por eu mesmo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Alhures


"Car la vie est allieurs..." Ainda deu para ouvir quando fechei a porta de casa e, no escuro corredor, me valendo das luzes que esgueiravam-se pela janela do extremo esquerdo, rodei a chave na fechadura e olhei alhures. Nada fora do comum, é algo que venho fazendo todas as noites antes de ir trabalhar. O que me faz lembrar, pois, de quando era criança e as vezes em que faltava energia no bairro. Àquela epoca era comum, hoje, contudo, moro num apartamento cujo contrato menciona luz do corredor incluso e, toda vez que vou sair de casa, cerro o trinco às cegas e continuo a estranhar, olhando alhures, para um passado de historias de rapozas e bolos enterrados.
Um dos motivos por eu não gostar de caminhar no escuro: Luzes súbitas e desconhecidas. Lembro que na casa de meus pais havia uma antiga televisão em preto e branco que meu pai trouxera de São Paulo. Meu irmão e eu estávamos encantados com o poder de colorir da Panasonic, mas sempre que um queria assistir um programa que o outro não queria, e esse estava sob o poder, recorríamos a ela. Sim, por que entre sovas e pontapés, também estabeleciamos regras. Uma delas era: quem primeiro ligasse a TV podia usufruir da mesma ao seu bel-prazer enquanto a mesma permanecesse ligada ou papai e mamãe não quizessem assistir, respectivamente, Jornal Nacional ou a novela das sete. Mas claro que, como tudo na vida, em nossas leis, quais as brasileiras, haviam brechas: e quando a energia faltava ou sem querer a TV desligava, era um baile até entrarmos em comum acordo. Na verdade nunca entravamos. Ou nos atracavamos até alguem começar a chorar ou até que a justa e reverendíssima chinelada da mamãe em nossos couros intervisse.
Bem, por um dia desses faltou energia no bairro, e como não tinha ninguem em casa, entrei desembestado na sala para fazer posto frente a TV, quando esbarrei em algo que caiu com estrondo no chão e provocou um clarão meio azulado. Todos vieram correndo e me encontraram no sofá ao lado da TV preto e branco ... ambos aos pedaços. (Como sempre, me fingi de louco, que não sabia de nada, igual como quando uma vez quebrei um papagaio de faiança italiano em varios pedaços e colei com cola maluca, crente que ninguem ia notar - será que dessa vez dava para colar? Resumindo, das duas vezes apanhei.)
Os dias que se seguiram foram de extrema desolação. Como meu irmão era mais rápido, sempre monopolizava a TV. E como eu era mais esperto, sempre desligava o gerador. Perdi o Rei Leão, Conan o Bárbaro, Madmax, e toda uma infânica por meu jeito desastroso e a crueldade de meu irmão (o bandido chegava a colocar no canal que eu queria por alguns segundos e quando notava minha cara de prazer, mudava lentamente e sorria entredentes)
Bem, trocando por miudos, dessa vez fora diferente. Rodei a chave na fechadura e assim que virei me surpreendi com um feche de luz às minhas costas. Como disse, não é do escuro que tenho medo; mas de luzes bruxuleantes e repentinas. Voltei-me apressadamente em direção a janela do fim do corredor e, além de uma luz amarelada do poste, só a janela de um apartamento lá longe pude destinguir. Estava todo erriçado como um gato quando tornei a seguir o corredor rumo às escadas. Foi ai que, vendo minha propria sombra projetada diante de mim, no meio de toda aquela escuridão, percebo tratar-se de um flash de maquina fotográfica. Caminho então em direção à janela e outros 3 flashes são disparados. Mas não era àquela direção que ficava o predio onde morei há quatro meses atrás? E não foi dalí que tirei as tais fotos (uma das quais aqui anexada)? Será que na verdade nada daquilo aconteceu, aquela tarde cinzenta chorando ao som de It' s my party após um fim de festa desastroso, e as fotos? Talvez tenha sido uma visão... Lembranças, criadas, vividas, onde encontrar o ponto que as diferenciam? Se os anos passaram, por que não levaram os medos de infância junto?
Ainda estou procurando, mas as respostas, alhures, suspensas como bolhas de sabão, me refletem na noite daquele ano, quando quebrei a TV e a vida parecia não ser mais colorida.

2 comentários:

  1. Me fez lembrar de uma epoca muito boa da minha vida, bom eu era como seu irmao, ja fiz varias vezes essa maldade, eu sou menos fria so que ele era esperto e eu acabava sendo culpada! ja com a minha irma... nao dar ela eh muito esperta!! beijo!!!

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  2. Muitas vezes as respostas estão 'suspensas como bolhas de sabão' e eu não consigo tocá-las.

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