"Insatisfeito crônico, irremediável e irredutível insatisfeito: Por isso então sempre buscando, sempre dissecando, sempre amando, sempre escrevendo, sempre sonhando, sempre brincando, sempre subvertendo a ordem das coisas, sempre,
sempre aprendendo." Eu, por eu mesmo.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vânia


Mais uma vez o acaso, mais uma vez. O dia parecia longo, mais do que o normal, e o sono (ainda que após 10 horas ininterruptas) incompleto.
Era noite, e eu andava pelas ruas do centro, como sempre olhando para o alto, para onde apontavam os edificios, às vezes ultrapassando o fio da calçada, noutras me deparando com o olhar surpreso dos transeuntes a vacilar entre o céu habitual e a seta de minhas miradas, quando veio-me à lembrança um trecho de Tio Vânia de Tchekôv.
Mas o fio que me ligava ao livro logo perdeu-se quando, na Pedro Pereira com a General Sampaio, escorreguei para fora da calçada e o carro alarmou contra mim!
Alcancei a parada de ônibus estupefato, arrefecido de um todo.Todos os ônibus chegavam, todas as pessoas saíam, e todas as especies de underbeings que habitavam as ruas sujas e abandonadas do centro se esboçavam à meia luz dos postes e me olhavam das brechas dos bueiros que representavam suas realidades como se vissem em meus olhos e até se comprazessem do que eles diziam, inquietos, quicando duma ponta a outra: nada do "Aeroporto"; nada de minha vida protegida e garantida. Amaldicoei, pois, inconscientimente, meu trabalho, minha casa, meus livros e minha vida, chutei uma lata de coca-cola e a mesma levantou gotas de lama no ar cujas partículas se confundiram com a fumaça deixada por carros anteriores e bafos de prostitutas fumando seus Marlboro lights nas esquinas apenas há alguns instantes - Eram elas que entravam em carros de estranhos enquanto mais tarde eu sorriria e daria boas vindas aos donos desses mesmos carros.
Cerrei os dentes, engoli o choro; a indignação me embrulhava o estomago e dava voltas e mais voltas.
Foi quando, artificialmente loira como as flores de plástico na sala de estar de minha avó (nunca entendi porque só as da cozinha ela fazia questão de aguar e manter vivas), ela aproximou-se assustada, fatigada e inquieta; falando tão rápido, mais até do que o comum para nós que falamos o Cearês, e de braços cruzados. "Né pra mim não, isso, num é não" ela insistia a cada frase feita. E eu especulava. Pareciamos combatentes: Ora inimigos, ora aliados, ora indiferentes, ora complacentes da dor um do outro: eu reclamava de minha condição e ela só repetia: "Né pra mim não, isso, num é não"
Foi quando, me desarmando de um todo, e a cada palavra humilhado, me rendi ao ridiculo enquanto ela disseminava: "Moro numa casa doada numa periferia da Serrinha, trabalho de oito às vinte, almoço às nossas custas, o bebedouro é imundo, a moça que veio de taíba não aguentou e foi pras calçadas, eu saí dessa, mas isso, isso, né pra mim não, num é mesmo" E o que me parecia a pior coisa seria para ela o céu.
Muitas delas, especulei quando o ônibus fez a volta, saindo da Expedicionários para entrar na avenida que dava acesso ao aeroporto, sim, muitas dessas que entravam no carro com desconhecidos e nunca sabiam se voltariam, casavam-se com gringos, iam morar fora, faziam qualquer outra coisa, mas ela, ela fora ser vendedora - Uma escrava!
E eu que um dia disse que a vida era boa demais para se viver, que a qualquer ser humano o era possível - E meu amigo que uma vez me vexara: "Não meça a realidade dos outros por sua própria!"
... E eu que decidira um dia não mais viver...
"Mas já vou descer" Ela disse, julgando que eu a ignorara a maior parte do tempo, que eu não escutara uma maldita palavra sua, que talvez eu poderia ser o gringo que a levaria pra fora, que talvez eu só a amasse enquanto estivessemos num ônibus e fossemos desconhecidos juntos... que talvez fôssemos apenas diferentes no sexo, na classe e no nivel da dor; quem sabe até nem considerasse que o Outsider aqui é quem precisava ser tragado para dentro da materia!
"Como o senhor se chama?" Ela perguntou escondendo os dentes com uma das mãos, talvez 10 ou 12 anos mais velha do que eu.
"Oh, perdão, deixe-me apresetar" e eu disse meu nome canhestramente.
Ela, por sua vez, riu
"Prazer, Vânia"
E eu me lembrei da frase e ri também o acaso, o impossível da vida.
Quando dei por mim, no entanto, ela já havia descido e eu estava no aeroporto. Mas não era da frase que eu queria me lembrar agora, era do modo como ela viera até mim: Vânia a trouxera em seus braços, como sua própria vida, estendendo-me como envolto por invólucro do qual eu só poderia me livrar se o partilhasse, se o sentisse...
Mas a minha realidade era e sempre seria outra; talvez um outro depois de mim, ou quem sabe o outro depois desse, ou apenas em um milhão de anos haveria quem pudesse partilha-lo, vivê-lo, mistificá-lo como ela jamais poderia se soubesse ser capaz.

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